quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Santo homem

Tísico, de altura mediana e olhos fundos. Rosto, braços e dedos finos. Corpo sempre ereto, um caminhar desengonçado e ritmado, o corpo todo balançava numa dança compassada, estranha e engraçada.
Assim era João Roberto. Gostava de longas caminhadas, de segundas feiras chuvosas, de sua namorada Rita, e principalmente de divagar.
O corpo acostumara-se a rotina diária. Desde o levantar cedo, passando pelo trabalho tedioso, até a caminhada à casa da namorada todo final de tarde. Mas a cabeça e o peito nunca se acostumaram a isso. Do trajeto de sua casa até o correio onde trabalhava separando correspondências – distância que não passava de alguns 20 minutos-, vagueavam-lhe sonhos, idéias e mil fantasias. Ia desde a idade média, onde era um exímio cavaleiro, cortejado por mil donzelas; até o futuro, onde era uma célebre figura aclamada por toda a gente.
João Roberto tinha o coração puro, era não só na sua cidade, mas para todo o mundo um paradigma de bondade. Tinha também o pulso firme, a voz que impunha autoridade e um senso de justiça exemplar.
Não demorou muito –quando iniciou sua vida adulta -para que ele começasse a ser assediado. Toda a gente de sua cidade procurava-o para os mais diversos motivos, desde ajuda financeira a conselhos sentimentais. Pediam sua opinião em tudo, em como iniciar um novo negócio, como educar os filhos, até como agir corretamente perante a esposa.
Sua fama, que começara de forma gradativa, dentro de alguns anos tomou proporções mundiais. Falam em criar a Igreja de João Roberto, surgiam seitas, movimentos, todo tipo de aglomeração de pessoas que queriam seguir o exemplo de ser humano que era. Organizaram uma passeata, um dia mundial dedicado a ele, honravam-no como um verdadeiro messias.
E foi no dia de sua canonização que Deus fritou-lhe com um raio, pois João Roberto apesar da pessoa que era, tinha um enorme defeito. Era ateu.

Começando

E só pra num falar que eu começo as coisas em segundas-feiras, e também para já me dar ânimo para o próximo ano e minhas resoluções, aí vão alguns textos antigos. Medianos, mas que particularmente gostei.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Resoluções para 2009

Ler mais, tirara a poeira juntada durante os meses que se passaram aqui e escrever mais...
Li tudo por aqui hoje e me deixou feliz. Preciso voltar a fazer mais isso.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

E de dois, fez-se tudo

Era cada um a metade, e exatamente a metade, de toda a existência. Tudo que havia estava neles contido, toda noite e toda verdade faziam parte dos dois.

SAMECH e AYIN era como se chamavam. Nomes impronunciáveis e desconhecidos em língua humana, ou de qualquer outro ser vivente. Mas também nomes mágicos se pronunciado em sua língua original. Uma língua que por si só era encantada, que poderia dar a vida e da mesma forma tirar, que poderia criar e destruir em poucos vocábulos.

E eles se amavam. Um amor tão largo e incompreensível que certas vezes os fazia fundir-se em um. Amavam-se porque se completavam, sendo cada um a metade de toda a existência, e também precisavam um do outro para que tudo pudesse ser. Um amor que os completava, que os fazia existir e que também os enlouquecia. Pois da mesma forma que se amavam, em silêncio também se invejam, visto que sendo exatamente a metade de toda a existência, nunca um seria nem maior, ou melhor, do que o outro.

A inveja e orgulho os corroeram através dos tempos e envenenou seus corações e cabeças a ponto de oscilarem entre amor e ódio. E quando o amor e a inveja já não encontravam mais terreno por onde se ramificar, em um derradeiro encontro, a eternidade entrou em colapso e uma catarse sem igual deu surgimento ao universo. Ambos deixaram de existir e existir em tudo ao mesmo tempo.

Do cérebro de AYIN surgiu a trindade primeira, as divindades principais que governariam os mundos. Da parte frontal surgiu Heth, que é o deus do ódio e da vingança, o que destrói o mundo e todo cosmo a cada era. Da área central surgiu Dalephia que é a deusa do amor, da sensualidade e beleza. Dalephia é quem recria o cosmo a cada era. E da parte inferior surgiu Caph que é o deus da razão, aquele que guarda o cosmo durante toda uma era até que seja destruído e recriado novamente.

Do cérebro de SAMECH surgiram as demais criaturas e outras divindades menores. Sugiram os povos que habitam a terra dos homens, os seres benfeitores e também todos os habitantes da terra maculada.

Dos membros de AYIN fizeram-se os rios, a água e o céu. E de seu coração surgiu todos os animais de dentro e de fora da água. Seus cabelos deram origem às plantas, desde as rasteiras, até tagmmatarchis que, segundo se acredita, é a maior árvore existente, que possui galhos que nunca cessam de subir, até alcançar a morada dos deuses, e suas raízes nunca cessam de descer, até tocar o abismo das sombras.

Do ventre de SAMECH passou a existir o fogo, e seu coração deu origem ao vento, que viaja por todo lugar. Desde Ouranos – a terra dos iluminados - e chega a Kolasi - a terra dos amaldiçoados-.

Aconteceu que no momento do ímpeto criador, ambos disseram tudo o que poderia ser dito, como uma tormenta de verborragia. Proferiram os cânticos de amor e hinos de maledicências. E enquanto Caph se ocupa de manter o universo sucedendo-se, os hinos amáveis são transportadas por Dalephia, e é conhecido por todos os povos como fumaça celestial, a fumaça que verte água pelo mundo e através delas é que se promove o reencontro entre SAMECH e AYIN, e tudo volta a ser os dois e somente eles. Cada um sendo a metade e exatamente a metade de toda existência. Porém é encargo de Heth transportar as maledicências em forma de fumaça negra, trazendo de volta a inveja para corroer-lhes e tudo volta a acontecer.

Ela que sempre acreditou (Ou bem que eu tentei avisar)

Era uma vez um homem com 36 dedos, e ponto final.

Tudo bem. Eu sei que estou sendo simplista demais, e que uma vida humana é composta de um emaranhado de seqüência de acontecimentos complexos. Na verdade eu estava apenas lhe poupando o trabalho e evitando a prolixidade.
Mas já que você insiste contarei também os detalhes desta ligeira história.

João Henrique nasceu como um menino normal - de fato ele levou uma vida inteira normal, mas eu não deveria lhes dizer isto, pois estragaria todo o restante da história-, nove meses a família esperando, os pais emocionados mesmo depois de dois outros filhos. Ele só nasceu com uma ligeira diferença, nasceu com nove dedos em cada mão e em cada pé. Sua mãe, religiosa, temente a Deus e com certa tendência ao misticismo, previa que tal anormalidade era prenúncio que seu filho seria alguém especial neste mundo.

Em seus primeiros anos os dedos causaram mais espanto e interesse nos familiares do que no próprio menino. Também essa indiferença devia-se ao fato de que ele não sabia exatamente quantos dedos deveria ter na mão, nem se quer se preocupava que existiam dedos ou mão. Estava mais preocupado em descobrir o mundo, e brincar com os monstros e personagens que fabricava em sua cabeça.

A primeira vez que tomou consciência de sua 'irregularidade' foi quando passou a ter contato com outras crianças na escola. Durante as aulas, espantava-se com a limitação dos outros alunos em hora escreverem com o lápis e hora apagar o que erravam, hora escreverem a caneta e hora rabiscar o que erravam, mas nunca faziam como ele de uma só vez a escrita e a correção. Sentia-se até um tanto vaidoso por sempre ser o campeão dos campeonatos de ditado. Cogitou-se até a possibilidade de ele competir com as séries mais avançadas, para que outros tivessem mais chances.

Os anos se passaram e JH foi levando sua vida sem nada de extraordinário, e sua mãe sempre esperançosa de que algo de especial seu filho ainda faria. João por sua vez não concordava este respeito, achava aquilo tudo muito normal. Com o passar dos anos tomou consciência de que era diferente dos demais, não achava aquilo ruim nem bom, via-se apenas diferente. Teve uma adolescência tumultuada, se revoltou, se apaixonou, fez planos para vida toda, achou que viveria para sempre, mas ainda assim, não fez nada em favor do desenvolvimento humano de forma geral.

Aos vinte e quatro anos ingressou na carreira pública, após um concurso com poucos participantes, foi aprovado para o cargo de secretário do serviço sanitário de sua cidade. Aos trinta e três anos se casou com uma bibliotecária, teve dois filhos, e aos trinta e oito se divorciou. Não por brigas, traições ou a relação que se desgastou. A verdade é que não suportava o cheiro acre de sua mulher durante a noite, ela que se recusava a se depilar, principalmente nas axilas.

Depois de nove anos de trabalho, achou que estava apaixonado. Uma secretária bem nova, treze anos mais nova do que ele, que fora recém contratada. Trazia-lhe chocolates, livros de poema que ele fingia já ter lido e cartões postais de diversos cantos do mundo, que ele dizia já ter visitado em sua juventude. Dois anos cortejando-a incansavelmente até receber o anuncio seu casamento. Não que ele sentisse ciúmes dela, mas achava o fim do mundo ter sido trocado pelo gerente do almoxarifado.

Eu sei que a primeira impressão, pode até parece que estou sendo pessimista, e que só narrei as coisas ruins que se sucederam. Eu lhes asseguro que não. João chorou, riu, apaixonou-se, decepcionou-se, sonhou, tentou, comeu, dormiu, todas essas coisas.

De toda forma, o aviso foi dado desde o principio.

O fato é que antes do fim da vida, a mãe de JH finalmente viu o que passou a vida inteira esperando. João, 45 anos, divorciado, dois filhos, funcionário público e com gastrite, ganhou na loteria.

Era uma vez um homem com 36 dedos e ponto final.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

Elas podem esperar...

-Que horas são?

Ela perguntou saindo do banho envolta na toalha.

-Nove e meia. Que horas vocês combinaram de se encontrar?

-As dez. Mas com certeza as meninas vão chegar aos poucos.

Ele sentado na cama, as pernas esticadas, papel e caneta na mão, acompanhava com os olhos ela andando pelo quarto enquanto se arrumava.

-Sabe, ainda é meio estranho me acostumar com a idéia de estar casada, às vezes parece que a ficha não caiu.

-Eu notei, por exemplo isto lá são horas de uma mulher casada sair de casa?

O tom de brincadeira a fez sorrir também.

-É só uma conversa com minhas amigas, faz tempo que não nos vemos. Ela responde sentando aos pés da cama com o secador de cabelos na mão.

Ele baixa a cabeça e volta a rabiscar algumas palavras no papel.

O barulho do secador não o deixa se concentrar, levanta então os olhos e volta a observá-la, desta vez imóvel fitando suas costas nuas.

-E a música que estava escrevendo, acabou? Pergunta ela demonstrando real interesse e olhando-o pelo espelho.

-Ainda não, o que na verdade acabou foi a criatividade.

Ela sem tirar os olhos dele:

-E você vai continuar aí então olhando para o meu bumbum?

-É o que eu pretendo.

E levantando os olhos até encontrar os dela, deu um sorriso malicioso que a fez também sorrir.

-E já que você tocou no assunto, tive uma idéia genial. Como estou querendo perder alguns quilos, resolvi cortar uma das minhas refeições.

E ela sem entender muito bem, dá corda ao assunto:

-Como assim? Vai viver só de luz?

-Cortar não, vou substituir. Vou substituir uma de minhas refeições por sexo. E como você é uma das principais envolvidas nesta empreitada, achei importante lhe comunicar.

Ela tenta, mas não consegue conter a gargalhada.

-Combinado, desta forma eu também perderei alguns. Respondeu em meio aos risos.

-Levando-se em consideração que se gasta cerca de 110 calorias por hora numa atividade sexual. Dentro de alguns meses serei um tri atleta, quer dizer, seremos.

-Não sei de onde você tira essas idéias malucas.
Ela agora revira o guarda-roupa, tentando decidir-se entre suas calcas jeans.

-Sabe, andei pensando que em dois anos seria uma boa época para termos filhos.

Ele por um momento retira o sorriso dos lábios, toma uma aparência séria.

-Acho que ainda é cedo, você e eu ainda estamos começando a carreira, precisamos nos estabilizar mais.

-Mas eu não quero ser mãe muito tarde.

-Eu entendo. Então ligue para suas amigas e cancele o encontro, vamos discutir sobre o assunto. E o sorriso mais uma vez entrega seu tom de brincadeira.

-Você não fala nada sério mesmo, não é?

E volta a andar pelo quarto, a calca já vestida e o tronco ainda nu.

-E por falar em carreira, estou pensando em me demitir e montar o meu próprio escritório.

-Mas você está só começando a carreira, por que já quer seguir sozinho?

-Porque quando tivermos filhos, terei o tempo que eu quiser para ficar com eles.

-Você está sendo precipitado, vai ter todo o tempo do mundo para isto, não precisa que seja agora.

-São só idéias por enquanto, nada que eu vá decidir já amanhã.

Ela já vestida e sentada aos pés da cama, dá os últimos retoques na maquiagem e cabelo. Olha para o relógio, mas não se apressa.

-Pronto, acho que está na hora. E quanto a você, comporte-se enquanto eu estiver fora.

-Prometo me comportar. Mas tem certeza que não quer ficar e discutir sobre as crianças?

Ela vai em direção a ele para se despedir. Ele fitando-a nos olhos o trajeto todo dos pés da cama até a cabeceira. Ela se inclina sobre a cama para beijá-lo. Ele pega-a pela nuca. Ela suspira, o beijo demora mais do que havia planejado. Segue então até a porta do quarto, ele observando-a sem tirar os olhos por um instante. Ela sai do apartamento, entra no elevador e aperta o botão do térreo. Olha-se no espelho, arruma alguns pequenos toques da maquiagem e algumas passadas de mão nos cabelos.

Encosta-se na parede lateral enquanto o elevador desce, revira a bolsa procurando as chaves do carro e pega na mão um par de sapatos de bebê, destes recém nascidos, que mais parecem dois chaveiros. Leva-os até o nariz para sentir aquele cheiro inconfundível de criança, e devolve-os na bolsa. Pega depois uma foto deles, tirada há pouco tempo, em que não há nada de especial, além de dois umbigos. O dele, e o dela. Lembra-se ainda de quando foi tirar a foto, os dois deitados lado a lado na grama do parque, levantando a camisa e ele com a máquina fotográfica apontada para os umbigos: “Diga xis”.

O elevador abre a porta, ela desencosta-se da parede lateral e se põe pronta para caminhar. Olha para porta da rua, nota que uma garoa fina e quase imperceptível está caindo. Detém-se então por alguns instantes naquela posição. Ereta, a foto em mãos e olhando para a porta. Um senhor de idade, que ela não se lembra de já ter visto no condomínio aparece na porta.

-Sobe?

Ela volta a olhar a rua, prende a respiração por alguns instantes que parecem intermináveis fazendo o senhor franzir as sobrancelhas em desentendimento.

Ela solta a respiração e deixa escapar um sorriso.

-Sim. E aperta o oitavo andar.

Entra em casa sem dizer nada, deixa cair a bolsa e a foto no chão ao lado da cama, tira os sapatos, entra debaixo do lençol e volta a beijá-lo.