quinta-feira, 11 de outubro de 2007

E de dois, fez-se tudo

Era cada um a metade, e exatamente a metade, de toda a existência. Tudo que havia estava neles contido, toda noite e toda verdade faziam parte dos dois.

SAMECH e AYIN era como se chamavam. Nomes impronunciáveis e desconhecidos em língua humana, ou de qualquer outro ser vivente. Mas também nomes mágicos se pronunciado em sua língua original. Uma língua que por si só era encantada, que poderia dar a vida e da mesma forma tirar, que poderia criar e destruir em poucos vocábulos.

E eles se amavam. Um amor tão largo e incompreensível que certas vezes os fazia fundir-se em um. Amavam-se porque se completavam, sendo cada um a metade de toda a existência, e também precisavam um do outro para que tudo pudesse ser. Um amor que os completava, que os fazia existir e que também os enlouquecia. Pois da mesma forma que se amavam, em silêncio também se invejam, visto que sendo exatamente a metade de toda a existência, nunca um seria nem maior, ou melhor, do que o outro.

A inveja e orgulho os corroeram através dos tempos e envenenou seus corações e cabeças a ponto de oscilarem entre amor e ódio. E quando o amor e a inveja já não encontravam mais terreno por onde se ramificar, em um derradeiro encontro, a eternidade entrou em colapso e uma catarse sem igual deu surgimento ao universo. Ambos deixaram de existir e existir em tudo ao mesmo tempo.

Do cérebro de AYIN surgiu a trindade primeira, as divindades principais que governariam os mundos. Da parte frontal surgiu Heth, que é o deus do ódio e da vingança, o que destrói o mundo e todo cosmo a cada era. Da área central surgiu Dalephia que é a deusa do amor, da sensualidade e beleza. Dalephia é quem recria o cosmo a cada era. E da parte inferior surgiu Caph que é o deus da razão, aquele que guarda o cosmo durante toda uma era até que seja destruído e recriado novamente.

Do cérebro de SAMECH surgiram as demais criaturas e outras divindades menores. Sugiram os povos que habitam a terra dos homens, os seres benfeitores e também todos os habitantes da terra maculada.

Dos membros de AYIN fizeram-se os rios, a água e o céu. E de seu coração surgiu todos os animais de dentro e de fora da água. Seus cabelos deram origem às plantas, desde as rasteiras, até tagmmatarchis que, segundo se acredita, é a maior árvore existente, que possui galhos que nunca cessam de subir, até alcançar a morada dos deuses, e suas raízes nunca cessam de descer, até tocar o abismo das sombras.

Do ventre de SAMECH passou a existir o fogo, e seu coração deu origem ao vento, que viaja por todo lugar. Desde Ouranos – a terra dos iluminados - e chega a Kolasi - a terra dos amaldiçoados-.

Aconteceu que no momento do ímpeto criador, ambos disseram tudo o que poderia ser dito, como uma tormenta de verborragia. Proferiram os cânticos de amor e hinos de maledicências. E enquanto Caph se ocupa de manter o universo sucedendo-se, os hinos amáveis são transportadas por Dalephia, e é conhecido por todos os povos como fumaça celestial, a fumaça que verte água pelo mundo e através delas é que se promove o reencontro entre SAMECH e AYIN, e tudo volta a ser os dois e somente eles. Cada um sendo a metade e exatamente a metade de toda existência. Porém é encargo de Heth transportar as maledicências em forma de fumaça negra, trazendo de volta a inveja para corroer-lhes e tudo volta a acontecer.

Ela que sempre acreditou (Ou bem que eu tentei avisar)

Era uma vez um homem com 36 dedos, e ponto final.

Tudo bem. Eu sei que estou sendo simplista demais, e que uma vida humana é composta de um emaranhado de seqüência de acontecimentos complexos. Na verdade eu estava apenas lhe poupando o trabalho e evitando a prolixidade.
Mas já que você insiste contarei também os detalhes desta ligeira história.

João Henrique nasceu como um menino normal - de fato ele levou uma vida inteira normal, mas eu não deveria lhes dizer isto, pois estragaria todo o restante da história-, nove meses a família esperando, os pais emocionados mesmo depois de dois outros filhos. Ele só nasceu com uma ligeira diferença, nasceu com nove dedos em cada mão e em cada pé. Sua mãe, religiosa, temente a Deus e com certa tendência ao misticismo, previa que tal anormalidade era prenúncio que seu filho seria alguém especial neste mundo.

Em seus primeiros anos os dedos causaram mais espanto e interesse nos familiares do que no próprio menino. Também essa indiferença devia-se ao fato de que ele não sabia exatamente quantos dedos deveria ter na mão, nem se quer se preocupava que existiam dedos ou mão. Estava mais preocupado em descobrir o mundo, e brincar com os monstros e personagens que fabricava em sua cabeça.

A primeira vez que tomou consciência de sua 'irregularidade' foi quando passou a ter contato com outras crianças na escola. Durante as aulas, espantava-se com a limitação dos outros alunos em hora escreverem com o lápis e hora apagar o que erravam, hora escreverem a caneta e hora rabiscar o que erravam, mas nunca faziam como ele de uma só vez a escrita e a correção. Sentia-se até um tanto vaidoso por sempre ser o campeão dos campeonatos de ditado. Cogitou-se até a possibilidade de ele competir com as séries mais avançadas, para que outros tivessem mais chances.

Os anos se passaram e JH foi levando sua vida sem nada de extraordinário, e sua mãe sempre esperançosa de que algo de especial seu filho ainda faria. João por sua vez não concordava este respeito, achava aquilo tudo muito normal. Com o passar dos anos tomou consciência de que era diferente dos demais, não achava aquilo ruim nem bom, via-se apenas diferente. Teve uma adolescência tumultuada, se revoltou, se apaixonou, fez planos para vida toda, achou que viveria para sempre, mas ainda assim, não fez nada em favor do desenvolvimento humano de forma geral.

Aos vinte e quatro anos ingressou na carreira pública, após um concurso com poucos participantes, foi aprovado para o cargo de secretário do serviço sanitário de sua cidade. Aos trinta e três anos se casou com uma bibliotecária, teve dois filhos, e aos trinta e oito se divorciou. Não por brigas, traições ou a relação que se desgastou. A verdade é que não suportava o cheiro acre de sua mulher durante a noite, ela que se recusava a se depilar, principalmente nas axilas.

Depois de nove anos de trabalho, achou que estava apaixonado. Uma secretária bem nova, treze anos mais nova do que ele, que fora recém contratada. Trazia-lhe chocolates, livros de poema que ele fingia já ter lido e cartões postais de diversos cantos do mundo, que ele dizia já ter visitado em sua juventude. Dois anos cortejando-a incansavelmente até receber o anuncio seu casamento. Não que ele sentisse ciúmes dela, mas achava o fim do mundo ter sido trocado pelo gerente do almoxarifado.

Eu sei que a primeira impressão, pode até parece que estou sendo pessimista, e que só narrei as coisas ruins que se sucederam. Eu lhes asseguro que não. João chorou, riu, apaixonou-se, decepcionou-se, sonhou, tentou, comeu, dormiu, todas essas coisas.

De toda forma, o aviso foi dado desde o principio.

O fato é que antes do fim da vida, a mãe de JH finalmente viu o que passou a vida inteira esperando. João, 45 anos, divorciado, dois filhos, funcionário público e com gastrite, ganhou na loteria.

Era uma vez um homem com 36 dedos e ponto final.