quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Ela que sempre acreditou (Ou bem que eu tentei avisar)

Era uma vez um homem com 36 dedos, e ponto final.

Tudo bem. Eu sei que estou sendo simplista demais, e que uma vida humana é composta de um emaranhado de seqüência de acontecimentos complexos. Na verdade eu estava apenas lhe poupando o trabalho e evitando a prolixidade.
Mas já que você insiste contarei também os detalhes desta ligeira história.

João Henrique nasceu como um menino normal - de fato ele levou uma vida inteira normal, mas eu não deveria lhes dizer isto, pois estragaria todo o restante da história-, nove meses a família esperando, os pais emocionados mesmo depois de dois outros filhos. Ele só nasceu com uma ligeira diferença, nasceu com nove dedos em cada mão e em cada pé. Sua mãe, religiosa, temente a Deus e com certa tendência ao misticismo, previa que tal anormalidade era prenúncio que seu filho seria alguém especial neste mundo.

Em seus primeiros anos os dedos causaram mais espanto e interesse nos familiares do que no próprio menino. Também essa indiferença devia-se ao fato de que ele não sabia exatamente quantos dedos deveria ter na mão, nem se quer se preocupava que existiam dedos ou mão. Estava mais preocupado em descobrir o mundo, e brincar com os monstros e personagens que fabricava em sua cabeça.

A primeira vez que tomou consciência de sua 'irregularidade' foi quando passou a ter contato com outras crianças na escola. Durante as aulas, espantava-se com a limitação dos outros alunos em hora escreverem com o lápis e hora apagar o que erravam, hora escreverem a caneta e hora rabiscar o que erravam, mas nunca faziam como ele de uma só vez a escrita e a correção. Sentia-se até um tanto vaidoso por sempre ser o campeão dos campeonatos de ditado. Cogitou-se até a possibilidade de ele competir com as séries mais avançadas, para que outros tivessem mais chances.

Os anos se passaram e JH foi levando sua vida sem nada de extraordinário, e sua mãe sempre esperançosa de que algo de especial seu filho ainda faria. João por sua vez não concordava este respeito, achava aquilo tudo muito normal. Com o passar dos anos tomou consciência de que era diferente dos demais, não achava aquilo ruim nem bom, via-se apenas diferente. Teve uma adolescência tumultuada, se revoltou, se apaixonou, fez planos para vida toda, achou que viveria para sempre, mas ainda assim, não fez nada em favor do desenvolvimento humano de forma geral.

Aos vinte e quatro anos ingressou na carreira pública, após um concurso com poucos participantes, foi aprovado para o cargo de secretário do serviço sanitário de sua cidade. Aos trinta e três anos se casou com uma bibliotecária, teve dois filhos, e aos trinta e oito se divorciou. Não por brigas, traições ou a relação que se desgastou. A verdade é que não suportava o cheiro acre de sua mulher durante a noite, ela que se recusava a se depilar, principalmente nas axilas.

Depois de nove anos de trabalho, achou que estava apaixonado. Uma secretária bem nova, treze anos mais nova do que ele, que fora recém contratada. Trazia-lhe chocolates, livros de poema que ele fingia já ter lido e cartões postais de diversos cantos do mundo, que ele dizia já ter visitado em sua juventude. Dois anos cortejando-a incansavelmente até receber o anuncio seu casamento. Não que ele sentisse ciúmes dela, mas achava o fim do mundo ter sido trocado pelo gerente do almoxarifado.

Eu sei que a primeira impressão, pode até parece que estou sendo pessimista, e que só narrei as coisas ruins que se sucederam. Eu lhes asseguro que não. João chorou, riu, apaixonou-se, decepcionou-se, sonhou, tentou, comeu, dormiu, todas essas coisas.

De toda forma, o aviso foi dado desde o principio.

O fato é que antes do fim da vida, a mãe de JH finalmente viu o que passou a vida inteira esperando. João, 45 anos, divorciado, dois filhos, funcionário público e com gastrite, ganhou na loteria.

Era uma vez um homem com 36 dedos e ponto final.

Um comentário:

Unknown disse...

Vou revisar e reescrever muita coisa disso, não gostei do resultado.